O insólito no cotidiano

2016-10-30-14-07-48José J. Veiga detestava prefácios. Temia receber de amigos, como Guimarães Rosa, a oferta para prefaciar seus livros. Veiga também não gostava de ser rotulado como um prosador da literatura fantástica. Segundo José Castello, que não se atreveu a escrever um prefácio, mas fez um ótimo posfácio para De jogos e festas, livro recém relançado pela Companhia das Letras, Veiga via em seus contos e novelas altas doses de realismo. E considerava que “o extraordinário não é um atributo exclusivo da literatura, mas se infiltra também na existência”.

E é o extraordinário, o insólito, que aparece de surpresa nos três textos que compõe o livro lançado originalmente em 1980 e vencedor do prêmio Jabuti do ano seguinte. Além de De jogos e festas, um pequeno romance de quase 100 páginas, que dá nome ao livro, temos o conto Quando a Terra era redonda e outro pequeno romance, O trono no morro.

Na superfície, os textos não tem nada entre si. De jogos e festas nos traz a história de um rapaz que tenta entender a morte de seu irmão. Em Quando a terra era redonda, um texto curto, sintético e narrado em uma tom jornalístico, nos vemos às voltas com um futuro no qual o planeta deixa de ser redondo e tudo, pessoas, objetos e até as palavras ficam achatadas. E, por fim, O trono no morro aparenta ser uma história ao modo de Guimarães Rosa, com as aventuras de um matuto que é integrado à força a um bando de jagunços em um sertão que lembra as veredas do mestre mineiro.

O que une as três narrativas é a surpresa. As histórias seguem seu curso, linearmente, e o leitor vai junto com o narrador. Seja no personagem do primeiro texto, que investiga a morte do irmão refazendo seus percursos na pequena cidade do interior, seja pela narrativa que mostra como ficou o mundo quando este se tornou plano e chato, ou então na história de Quintino, o jovem agricultor que vaga pelo sertão como jagunço até encontrar pouso em uma pequena vila, onde constrói uma vida pacata, ganhando o respeito dos habitantes como armeiro. A ordem das coisas é de repente rompida pelo insólito, causando sobressalto a quem lê e confirmando a máxima de José J. Veiga, de que o extraordinário é parte do cotidiano.

A literatura de Veiga traz a marca da concisão, do texto enxuto, sem floreios, muito comum a autores de sua geração. É uma prosa fluída, fácil de ler na superfície linear da narrativa. Mas também traz importantes subtextos, que merecem atenção redobrada do leitor que busca mais do que boas histórias. Em De jogos e festas, publicado no final da ditadura militar, os temas do poder policial, da violência rural, do papel da religião e do uso dos meios de comunicação como ferramenta de controle social aparecem com clareza. Escrito quando a censura ainda pairava sobre a produção artística, o livro aborda sexualidade e adultério com demasiada suavidade e meias palavras próprias de tempos sombrios de controle da “moral e dos bons costumes”. Como muitos artistas daqueles tempos, Veiga maneja com habilidade as metáforas que ajudam o leitor a entender exatamente o que ele quer dizer. Compreensão que escapava à maioria dos censores, que esquadrinhavam livros, peças de teatro, filmes e canções em busca de sinais explícitos de sexo e comunismo, os grandes vilões na cabeça dos generais que estragaram este país por tanto tempo.

Depois de ler De jogos e festas vou logo embarcar na obra mais conhecida do autor, que é Os cavalinhos de platiplanto, livro de contos elogiadíssimo, também relançado pela Companhia das Letras, este originalmente de 1959. Este ano ficará marcado pela leitura de dois grandes, e relativamente desconhecidos, autores brasileiros do século XX, que ganharam edições à altura de seu talento. O outro é Murilo Rubião, cujo único, e incrível, livro, resenhei aqui.

Que venham outros.

 

 

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