12 mulherões da p*$%@ na literatura

Estou lendo Cem anos de solidão pela quinta vez e outro dia cheguei ao trecho em que Arcadio Buendía se arvora do papel de chefe militar de Macondo e está prestes a executar um homem por causa de uma piada. É quando surge à praça sua avó Úrsula, a matriarca dos Buendía. Cata o neto pelo colarinho e dá-lhe uma surra em praça pública, assumindo ela mesma o comando informal do povoado. Ainda que defenda sua família com unhas e dentes, Úrsula é imbuída de profundos pragmatismo e senso de justiça, maiores que o amor pelos parentes – impressão que se repete por todo o livro. “Que mulherão!”, pensei.

Como Brás Cubas, não tenho nenhuma intenção de gerar criaturas às quais transmitir o legado da nossa miséria, mas se um dia tivesse uma menina, facilmente a batizaria Úrsula. Ou Antígona. Ou Blimunda. Ou Capitolina.

Carlos, co-autor desse blog, não compartilha da filosofia machadiana nem da predileção por nomes estranhos: não só gerou duas pessoinhas, como nomeou uma delas como Clara, em alusão a uma personagem de Isabel Allende (ele já contou esta história aqui).

Investigando minhas estantes, minha lista foi crescendo. Relembrei outras mulheres incríveis, complexas e multifacetadas, criadas por escritores e escritoras que passaram bem longe dos clichês sobre o feminino. Elas são inspiração para as mulheres de todos os tempos. Aqui vão algumas delas. Esperamos novas sugestões nos comentários. 🙂

Antígona
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A personagem que dá nome à tragédia de Sófocles é movida pela lealdade a seus princípios.  Oponentes numa guerra pelo controle de Tebas, seus dois irmãos acabam se matando em batalha. O rei Creonte baixa um édito proibindo o enterro de um deles, Polínices, que lutou contra o governo. Seu corpo deveria apodrecer a céu aberto e ser devorado pelos cães, como exemplo para outros rebeldes. Antígona luta até o fim pelo enterro de seu irmão, numa história arquetípica que expõe a diferença entre legalidade e justiça. Entre cumprir a lei e fazer o certo, Antígona escolhe o segundo caminho, mesmo arriscando a própria vida. Em suma, um mulherão da porra.

Medeia
Medeia é provavelmente, a primeira protagonista feminina feita de contradições, quase uma anti-heroína. Estrangeira na Grécia, ela se vê abandonada pelo marido Jasão e está prestes a ser expulsa do País, depois de ter deixado seu próprio povo para viver com ele. Como vingança, Medeia mata os próprios filhos. Por sua intensidade e densidade, a personagem é uma das mais interpretadas teatro do mundial. As releituras mais recentes têm ganhado tons feministas, de denúncia contra as condições a que as mulheres são submetidas, e contra as quais Medeia se rebela. Ela não é simplesmente a louca que mata os filhos, mas uma mulher pressionada muito além de seu limite. Há traços de Medeia em muitas personagens contemporâneas, como nas de Amada, de Toni Morrison.

Sherazade
É a típica personagem que pouca gente leu, mas todo mundo conhece e admira (é o meu caso). Traumatizado por uma traição, o rei Shariar decide que vai se casar todas as noites com uma nova mulher, matando-a no dia seguinte. Filha do primeiro ministro, Sherazade traça um plano e convence o pai a deixá-la casar com o rei. Na noite de núpcias, ela começa a contar uma história e segue em sua narrativa até ser interrompida pelo raiar do sol. Querendo saber como a trama continua, o rei poupa Sherazade até a noite seguinte, e assim por diante, até que o rei desenvolve afeição por ela e torna seu casamento definitivo. Com inteligência e diplomacia, ela dobra o rei ogro e salva da morte outras jovens, ao custo de um grande sacrifício pessoal. Sororidade na veia.

Morgana
IMG_20171104_132525504Não foi pouca coisa a realização de Marion Zimmer Bradley em As brumas de Avalon. A conhecida e cultuada história do Rei Artur é recontada sob o ponto de vista das mulheres – e de uma delas em especial, a feiticeira Morgana. Em meio à luta político-religiosa entre as práticas pagãs e o cristianismo em expansão, Morgana representa não só um mundo moribundo, como também o feminino sob ataque. Na mítica Camelot, a feitiçaria e o respeito a um sagrado feminino vão perdendo espaço a uma religião cuja cosmogonia propala a culpa da mulher como princípio. Ela luta nos bastidores do reino pela prevalência do paganismo no que, ao fim e ao cabo, é uma briga pela liberdade das mulheres.

Éowyn
Eowyn
Quase todos os personagens de O Senhor dos Anéis são homens; as poucas mulheres são inalcançáveis, ou caricatas, ou indefesas – exceto Éowyn, de Rohan. Destinada a viver como uma donzela num reino de cavaleiros, ela se disfarça como soldado e foge com o exército para fazer o que deseja: ir à guerra. De quebra, leva um hobbit na garupa. Éowyn acaba tendo um papel fundamental em uma das batalhas e protagoniza um diálogo lacrador com o Rei Bruxo, comandante do exército de Sauron:

– Seu tolo! Nenhum homem vivo pode me matar!
Eu não sou homem nenhum!

Éowyn então o mata com um golpe de espada na cabeça e salva a batalha que um exército de homens estava longe de vencer. Como nem tudo é só alegria, J.R.R. Tolkien reservou um final doméstico para Éowyn, que abandona as guerras para virar esposa. Dessa, forma a personagem é quase um acidente numa narrativa que começa e termina eminentemente masculina.

G.H.
Talvez G.H. seja o personagem que mais se aproxime de sua autora,  Clarice Lispector. Dona de casa comum, ela está na simplória atividade de limpar o quarto da empregada após demiti-la, quando acidentalmente esmaga uma barata na porta do guarda-roupas. O inseto partido ao meio, com o ventre aberto, provoca uma epifania em G.H., que então passa a divagar consigo mesma sobre a existência e sobre a essência do ser. Para além da escrita genial de Clarice – provavelmente, o melhor texto em fluxo de consciência da literatura brasileira – A paixão segundo G.H. nos coloca a complexidade da pessoa comum. Ainda que as amarras sociais sejam às vezes barreiras intransponíveis, há profundidade em cada mulher.

Dona Flor
IMG_20171104_132944639Ela poderia ser apenas uma boa quituteira e professora de cozinha baiana, mas Dona Flor é mais do que isso. Ela vive um casamento poliafetivo que inclui o seu segundo marido, muito mais velho que ela e incapaz de satisfazê-la, e seu primeiro consorte, um boêmio incorrigível, porém bom amante. Que Vadinho esteja morto, pouco importa. Dona Flor termina por aceitar seu espírito de bom grado, recebendo do morto o que o vivo não consegue proporcionar, e vice-versa. Há várias leituras possíveis na obra de Jorge Amado, inclusive a de que a morte de Vadinho é apenas metafórica, e ele permanece vivinho da silva na cama de Flor. O que me interessa aqui é a mulher que, pela primeira vez, desconsidera convenções sociais e dá prioridade a seu prazer.

Capitu
Criada por Machado de Assis como peça-chave de Dom Casmurro, Capitolina está no centro da maior controvérsia literária brasileira: afinal, ela traiu ou não traiu Bentinho? Que até hoje esse questionamento tenha tanta relevância é algo que deveria ser estudado pela Nasa. Bentinho é o único narrador do romance e se confessa absolutamente parcial em sua desconfiança. Um paranoico completo. Mas é com base exclusivamente em sua palavra que Capitu vai a julgamento até hoje, em júris simulados Brasil afora. Vejam: uma mulher fictícia vai a júri por causa de uma suposta traição, cuja única testemunha é o marido paranoico que se acha traído. Traição. Que não é crime. Mulher. Julgada. Dessa forma, Capitu é o maior símbolo nacional da injustiça cotidiana contra mulheres, que a sociedade insiste em considerar culpadas até quando são vítimas. Que esses júris simulados aconteçam com tanta frequência sem que ninguém problematize a injusta posição da ré diz muito sobre a situação das mulheres no Brasil.

bruxa, de Micheliny Verunschk
MichelinyAntes uma voz do que uma personagem, essa presença feminina (e feminista) na poesia de Micheliny Verunschk faz uma chamada à sororidade. Em B de Bruxa, esta voz conversa com outras mulheres em meio a um banquete antropofágico, em que os homens fazem as vezes de prato principal. Já que nos querem bruxas, bruxas seremos – com tudo o que temos direito, parece dizer a autora. Esse banquete fantástico também é uma metáfora à sexualidade feminina, tratada de uma forma extremamente libertadora. Afinal, são mulheres comendo homens, e não o contrário. Talvez, irmãs, devêssemos ser mais bruxas.

Blimunda
É Portugal no final do século 17, mas a jovem Blimunda Jesus pouco se lixa para convenções sociais quando decide viver sem casar oficialmente com Baltasar, soldado abandonado pelo exército por ter perdido a mão esquerda durante a guerra contra a Espanha. Juntos, eles estabelecem uma relação igualitária como nenhuma outra ao longo de Memorial do convento, de José Saramago. O casal laico é um contraponto interessante aos esforços empreendidos na construção do Convento de Mafra, obra que mata centenas de pessoas em nome da fé. Juntos, Blimunda e Baltasar ajudam o padre Bartolomeu de Gusmão a construir uma máquina voadora movida a vontades humanas; vontades que a jovem recolhe com sua fantástica capacidade de enxergar dentro das pessoas. Para Blimunda, nada em sua vida é fruto de embates – sua liberdade e a forma como se relaciona com Baltasar e com o mundo, é um dado natural, como respirar – como deveria ser para todas nós.

Diadorim

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Diadorim interpretado/a por Bruna Lombardi para a TV Globo

Grande Sertão: Veredas é sem dúvida um dos maiores livros brasileiros de todos os tempos, por inúmeros motivos. Um deles é a forma como Guimarães Rosa construiu a relação entre os jagunços Riobaldo e Diadorim. Juntos no mesmo bando, eles são amigos próximos e acabam desenvolvendo uma afeição que deixa Riobaldo curioso e ao mesmo tempo incomodado. “Meu pai disse que eu careço de ser diferente”, diz Diadorim quando Riobaldo se espanta com sua valentia, ainda pensando se tratar de rapaz. Só ao fim do romance ele descobre que Diadorim é uma mulher, e que o seu amor foi desperdiçado. Assim, Grande Sertão transita entre a homoafeição que desconcerta Riobaldo e, retroativamente, a luta de Diadorim por encontrar um lugar social que não condizia com seu gênero de nascimento.

Úrsula
Comecei e termino com ela.

Quando o coronel Aureliano Buendía decide submeter o general José Raquel Moncada ao conselho de guerra, Úrsula vai argumentar a seu favor. Moncada era adversário, porém amigo de Aureliano, e havia sido o melhor governante de Macondo até então.

“Ni siquiera tengo nada que decirte de su buen corazón, del afecto que nos tiene, porque tú lo conoces mejor que nadie”. El coronel Aureliano Buendía fijó en ella una mirada de reprobación. 
   – No puedo arrogarme la facultad de administrar justicia – replicó-. Si usted tiene algo que decir, dígalo ante el consejo de guerra. 
   Úrsula no solo lo hizo, sino que llevó a declarar a todas las madres de los oficiales revolucionarios que vivían en Macondo. Una por una, las viejas fundadoras del pueblo, varias de las cuales habían participado en la temeraria travesía de la sierra, exaltaran las virtudes del general Moncada. Úrsula fue la última en el desfile. Su dignidad luctuosa, el peso de su nombre, la convincente vehemencia de su declaración hicieron vacilar por un momento el equilibrio de la justicia. “Ustedes han tomado muy en serio esse juego espantoso, y han hecho bien, porque están cumpliendo com su deber”, dijo a los miembros del tribunal. “Pero no olviden que mientras Dios nos dé vida, nosostras seguiremos siendo madres, y por muy revoluconarios que sean tenemos derecho de bajarles los pantalones y darles una cueriza a la primera falta de respeto“.

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3 comentários sobre “12 mulherões da p*$%@ na literatura

  1. Medéia é uma psicopata possessiva!
    Vc não diz que antes de viver con Jasão e ser abandonada por ele, pra estar com ele ela matou o pai e esquatejou o irmão, sem dó nem piedade, só por causa do macho!
    Ela não tinha amor por ninguem, nem pelos filhos, pra ela só importava o que ela desejava, independente do que fosse necessário fazer pra conseguir

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  2. Segundo sua descrição, aí ela já escapa do rótulo de possessiva, já que nada importa pra ela além de sua própria vontade.

    Ter amor pelos filhos ou não nunca foi parâmetro para nada além do subjugamento de mulheres porque homens abandonam suas crias desde sempre, seja por qual motivo for, e muitas vezes são encorajados a isso. Já a mulher, está sempre ligada a suas crias porque, desde Rousseau, existe essa concepção de bosta de que a mulher foi “projetada” para a maternidade e o lar.

    Vale lembrar que homens tem esse tipo de comportamento e são amplamente aceitos, e parabenizados.

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