O escritor e seu duplo

Mac e seu contratempo é o novo livro do espanhol (ou catalão) Enrique Vila-Matas, um dos autores mais frequentes nas páginas deste blog. Assim como nos inúmeros livros que já resenhamos, Vila-Matas expõe nessa obra as suas obsessões. A começar pela repetição. E desta vez não é diferente. Lá estão as reflexões sobre a literatura, o lugar do escritor no mundo, as dezenas de referências a autores, a maioria reais, alguns inventados, características que se repetem em praticamente tudo que ele escreve. Mac Vila-Matas

E este é um livro essencialmente sobre repetições. Escrito na forma de diário, nos vemos às voltas com as anotações de um sujeito de meia idade, o Mac do título. Ele mora em um bairro de Barcelona cujo nome não oficial, Coyote, já é uma referência literária. Mac se apresenta como um construtor falido, casado com uma restauradora de móveis, Carmen. Sem ter o que fazer, se põe a escrever seu diário. E a stalkear Sánchez, seu vizinho de porta, escritor de relativo sucesso.

Carregado da ironia e do sarcasmos típicos de Vila-Matas, Mac e seu contratempo é uma sucessão de textos curtos, outra obsessão do autor, em que o anti-heroi atormentado pela inatividade e pelas altas doses de álcool, se dedica a reescrever Walter e seu contratempo, livro de estreia do vizinho Sánchez. Um romance ruim, que o escritor gostaria de esquecer.

O Walter do livro original é um ventríloquo que tem sua carreira interrompida por um grave contratempo. Ele perde a capacidade de fazer múltiplas vozes, uma das condições para que um ventríloquo possa ser bem sucedido com seus personagens de madeira. A partir daí, um sucessão de fatos insólitos acontecem no romance original. Mac então repassa para nós, os leitores do diário que “ninguém vai ler” cada um dos capítulos, descrevendo as peripécias do ventríloquo. E, na sequência final, anota como modificaria cada capítulo, inserindo na ideia de repetição também o ideal de modificação.

Só que nada é simples nessa história. Mac é um sujeito atormentado. Não apenas pelo desemprego, que também será alvo de uma revelação surpreendente, mas também pela desconfiança de que é traído pela mulher. Talvez com o escritor, de quem ela teria sido namorada na juventude, talvez com o alfaiate, ou, quem sabe, o padeiro do bairro.

Movido pelo ciúme, ele pensa em repetir um crime que está no romance original. Ou cogita o suicídio. E se nada der certo, pensa sair para comprar cigarros e nunca mais voltar.

Toda essa trama maluca é pano de fundo para Vila-Matas se deliciar com seus pensamentos sobre a literatura.

A figura do ventríloquo, por exemplo, personifica o escritor. Afinal, tal qual o titereiro, o literato também precisa exercitar a arte de ter muitas vozes. E se, como o Walter do romance do vizinho, as vozes do escritor se calam, temos aqui a interrupção, outra mania do catalão, que tem no escrevente de Herman Melville, um de seus contos preferidos, ao qual dedicou o ensaio Bartebly y companhia, já resenhado aqui.

As angústias de Mac com a escrita dão ensejo a referências literárias em profusão, o que deixa o leitor apreensivo. São tantos os livros e autores citados que você julga precisar de duas reencarnações só para ler essas dicas que maldosamente ele vai despejando nas páginas do diário de Mac.

Barcelona é uma presença marcante no livro. Citações de bares, ruas, monumentos, os tipos das ruas, o verão infernal no qual o diário é escrito, os mendigos, a crise econômica espanhola saltando aos olhos. Tudo na visão do flaneur Mac, que sai às ruas sempre que se depara com um bloqueio, uma interrupção e a necessidade de pensar. E coisas muito esquisitas acontecem nesses longos passeios.

Minha sensação, ao terminar a leitura, é de que Mac, o personagem, é um duplo de Vila-Matas. Ele projeta ali seu pavor de não mais escrever, o medo da morte, da falta de reconhecimento, o desejo permanente de sumir. Mas também é o lugar de um certo exibicionismo de erudição literária, que talvez seja uma das marcas constantes na obra do autor. Ele não esconde de ninguém que é um leitor voraz. E que faz da história de suas leituras matéria-prima para ótima literatura.

As obsessões de Vila-Matas são muito bem vindas. Ler Mac e seu contemporâneo foi uma aventura rápida e deliciosa. Cada fim de capítulo te chama para o próximo e, às vezes, só o sono ou a fome vão te interromper.

A boa notícia é a volta de Vila-Matas para o mercado editorial brasileiro. Autor que era publicado pela Cosac-Naify, agora chega pela Companhia das Letras, em edição com ótima tradução de Josely Vianna Baptista e capa com obra de Waltercio Caldas. Vale a leitura, embora não seja o melhor Vila-Matas que já li.

P.S. Na foto, La Pedrera, obra de Gaudi, que Mac chama de o mais importante cidadão que Barcelona já teve.

 

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