Tem um gosto amargo o instituto da delação premiada adotado no Brasil a partir da Operação Lava Jato. Não falo das consequências jurídicas e eleitorais já amplamente conhecidas (e também amargas), mas de algo ainda mais basilar, que parece causar um incômodo inconfessável na maior parte das pessoas. Falo de questões filosóficas e éticas. Isso porque a delação institucionaliza e premia (até na nomenclatura) um dos mais abjetos comportamentos humanos – a traição -, não por acaso tratada de maneira recorrente na literatura universal, a começar da própria Bíblia.
Por isso, ao nomear como Delação o seu sexto romance, o escritor paulista Márcio ABC concentra em uma única palavra uma carga absurda, como todo o peso de um edifício apoiado sobre a ponta de um alfinete. É um título que promete tensão, entregue em seguida pelo romance desde suas primeiras páginas. A delação de que trata o livro, no entanto, é de ordem muito mais complexa do que a notabilizada nas páginas políticas do noticiário brasileiro – ainda que esta também esteja lá. O livro foi publicado em 2019 pela Editora Kazuá.
A história é conduzida por um narrador sem nome, um jovem cineasta que, junto com os irmãos Bernardo e Isabela, é sócio de uma empresa administrada por um amigo dos três. Ele está nervoso, porque naquela noite o amigo dará um depoimento a procuradores da República que poderá envolver sua família em um crime de corrupção. No estado febril em que fica na expectativa deste depoimento, o narrador começa a falar de suas lembranças e traumas familiares para sua companheira, a quem se refere como Madame. O tom é confessional e sua história finda também sendo uma delação – mas de natureza inteiramente diferente.
Com sua linguagem verborrágica e irônica, o narrador é alguém claramente desconfortável em sua própria pele, em sua própria história, que narra desde a infância. Nesse sentido, Delação é uma espécie de romance de formação às avessas – com ele, assistimos não à formação do caráter de um jovem, mas sua completa implosão. O que leva a isso, afinal?
Márcio ABC vai entregando aos poucos, em fragmentos, o que foi o trauma causador desse estado de coisas. Logo, fica claro que o desajuste do personagem principal é resultado de uma infância abreviada pelo abuso sexual sofrido por ele e pelos irmãos e perpetrado pelo próprio pai, por anos a fio. Não se trata do tipo de abuso mais comum, mas um – e se é que isso é possível – com requintes de crueldade psicológica inimagináveis.
Como em várias dessas histórias, o abuso reiterado é como um elo que fecha algoz e vítimas numa bolha intransponível para o mundo exterior, e que muitas vezes faz essas últimas duvidarem da própria sanidade. Apesar disso, as crianças tentam reiteradamente alertar outros adultos ao seu redor, sem sucesso até que o próprio narrador toma uma atitude drástica, que gera outra ruptura na família. A narrativa desses fatos é a verdadeira delação do romance – e, portanto, uma traição. Mas traição a um ciclo de violência protegido por convenções sociais e hipocrisia, e que têm consequências igualmente violentas para a constituição dos três irmãos. E dentro desse ciclo está a própria mãe:
“Mamãe às vezes parece estar se preparando para uma pergunta. Como agora, eu a vejo com o olhar cravado em mim até o plasma, um tremorzinho sutil afeta as maçãs do rosto e os lábios entreabertos num risco de penumbra. Ah, não, não pense que isso vem de agora, não não, nós já passamos por isso antes, não passamos, Mamãe? Sim, nós passamos, como no dia em que estávamos sentados ao redor de uma mesa onde nossos sorvetes, meu e de Isabela, não o de Bernardo, derretiam intocados. Mamãe então nos olhou enquanto lambia as beiradas de sua casquinha crocante, depois suspendeu por um instante todo o movimento circular da mão, limpou a boca com o guardanapo e parecia decidida a perguntar sobre tudo. Era de fato o que eu mais esperava da parte dela, pulsava aqui dentro o desejo de poder satisfazê-la, detalhar o roteiro de nosso teatro. A hipótese de Mamãe abrir a boca para fazer a pergunta acentuava a pressão no meu peito, eu tinha medo de explodir a qualquer momento”.
Há uma traição anterior, portanto, a algo também mais basilar à constituição humana, que é a expectativa de proteção que os filhos têm com relação aos pais. Assim como na regra matemática segundo a qual a multiplicação ou divisão de dois números negativos é um resultado positivo, a traição da traição seria uma delação ou um ajuste de contas?
Delação é um livro que provoca tensão da primeira à última página. Lembro claramente da sensação de ombros contraídos, testa franzida e mandíbula travada ao percorrer as pouco mais de 140 páginas, a despeito do texto que transborda sarcasmo e um certo humor (melancólico) do começo ao fim. Como o velho dito sobre a tristeza do palhaço, Márcio ABC mostra aqui como o rir de si mesmo pode ser menos humor e muito, muito mais, um mecanismo de defesa.
O livro termina com o posfácio do autor esclarecendo de onde veio a inspiração para a história, curto e poderoso como o romance, que espelha de maneira surpreendente e nada convencional o momento presente da história brasileira.
PS: Sem querer quebrar o mistério mas já quebrando um pouco, o ABC é a abreviatura dos três sobrenomes do autor. Não entregarei quais. 🙂
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Um comentário sobre “Delação sem prêmio”