Não. Eu não descobri a verdadeira identidade de Elena Ferrante, a misteriosa autora da Série napolitana, conjunto de quatro romances que chacoalharam o mercado editorial nesta década, criando uma legião de leitoras e leitores e uma bolsa de apostas sobre quem está por trás do pseudônimo. E nem sei ela mora em uma ilha. Tudo indica que se trata de Anita Raja, uma experiente tradutora italiana, mas ninguém confirma e nem desmente. Mas ao ler A ilha de Arturo, de Elsa Morante, entendi de onde vem a inspiração para a saga de Lenu e Lina, que atravessa cinco décadas de história da Itália a partir da vida das amigas. O centro da narrativa é Nápoles e região, mas Turim, Milão, Paris e Roma também entram em cena. Não conhece Elena Ferrante? Leia aqui uma de nossas resenhas sobre a Série napolitana e pode apostar que são ótimos livros, daqueles que queremos ler de uma sentada só.
Mas nossa conversa é sobre Elsa Morante e sua obra-prima, A ilha de Arturo, que ganhou uma caprichada edição brasileira em 2019, lançada pela Carambaia, com excelente tradução de Roberta Barni. Esse foi mais um dos livros que chegou ao Lombada por impulso e por causa da capa, do esmero na impressão e do projeto gráfico. Até então, e essa é uma falha minha, jamais tinha ouvido falar em Elsa Morante.
Outra coincidência é que antes de A ilha de Arturo, eu tinha concluído a leitura de As pequenas virtudes, incrível seleção de ensaios e crônicas da minha crush literária Natalia Ginzburg, cuja resenha estará no blog em breve. Pois bem. Natalia e Elsa foram contemporâneas, tiveram papel importante na luta contra o fascismo e na promoção da cultura italiana. Ambas com intensa atividade intelectual e integrantes de famílias que dedicaram a vida a produzir arte, história, ciência política e literatura. Quer saber mais? Tem tudo na Wikipedia delas.
A ilha de Arturo é um romance de formação, assim como também são os quatro volumes da série. E aí está o primeiro ponto forte de contato entre Morante e Ferrante.
Arturo é o narrador de sua história. Olha para o passado e nos conta como viveu a infância e a adolescência na pequena ilha de Procida, que fica na entrada do Golfo de Nápoles, no Sul da Itália. Aí, mais um indício de como Ferrante bebeu diretamente nessa fonte. Procida fica a poucos quilômetros da cidade onde Lenu e Lina nasceram e na qual se passa a maior parte da trama da Série napolitana. Mais do que isso. Muito perto de Procida, fica Ischia, outra ilha da região. Para quem leu a série, sabe que Lenu viveu ali um dos momentos mais delicados de sua vida de adolescente.
O narrador Arturo Gerace já é adulto e há muito não habita mais a ilha natal. Isso a gente fica sabendo de cara. Aos bocados, ele vai nos revelar sua origem um tanto nebulosa. A mãe, que morreu em seu parto, o pai, de origem germânica, a vida na pacata ilha e a posição que eles ocupam naquele microcosmo.
Para o menino Arturo, o pai é um herói, que ele compara aos deuses gregos ou aos protagonistas dos grandes romances de aventura. Wilhelm Gerace é loiro, alto, forte. Herdou uma boa propriedade na ilha, que garante seu sustento. E, quando jovem, foi um dos meninos “prediletos” de um ricaço excêntrico, que fazia festinhas com os garotos em sua casa, uma espécie de castelo à beira-mar, na verdade um antigo convento de freiras. Uma peculiaridade: mulheres não entravam na propriedade em hipótese alguma.
Velho, abandonado pela maioria dos moços, o rico proprietário deixa a mansão para Wilhelm, com a condição de que ele não trouxesse mulheres para o lugar. Mas não é que uma vez dono da mansão, Gerace se engraça com uma moça, se casam e ela vai morar na famosa “Casa dei Guaglioni”. Meio que confirmando a lenda de maldição que corre na ilha, a jovem mãe acaba por morrer no parto do menino Arturo, que nasce moreno, ganha do pai o apelido de Mouro.
Wilhelm não vai criar o filho. Deixa a tarefa a cargo de Silvestro, o caseiro das terras que possui no outro lado da ilha. O menino cresce forte, à base de leite de cabra, muitas caminhadas e mergulhos no mar para pescar e buscar tesouros. O pai sai para longas e misteriosas viagens, fazendo com que Arturo crie fantasias a respeito das aventuras paternas em terras inóspitas e desconhecidas.
Na Procida dos anos 1930, quando a história é ambientada, havia em destaque na paisagem um outro antigo castelo, transformado em presídio. Ali também estavam depositadas algumas das fantasias do menino Arturo, que via nos perigosos presos homens corajosos que desafiavam as leis e o poder.
É nesse quadro que a história vai se desenrolando. Uma vida tranquila e ao ar livre na ilha. O medo dos moradores, especialmente as mulheres, em se aproximar da mal afamada casa, faz a vida de Arturo ser solitária. As idas e vindas do pai, sempre muito distante, se chocam com as frequentes tentativas do menino em se aproximar da figura paterna e ganhar um pouco de atenção e algum afeto. Em vão.
Até que certo dia Wilhelm aparece na ilha com uma jovem napolitana. Casado. E a vida de Arturo muda para sempre. Possuído de um ciúme incontrolável, tenta fazer da vida dela um inferno. Arturo está com 14 anos. A menina tem 16 e está casada com seu pai, quase um quarentão. O começo da relação é conflituoso e há disputa entre ambos pela atenção do alemão. Também em vão. Porque logo Wilhelm Gerace volta a viajar, deixando esposa grávida e o filho sozinhos na mansão. É a segunda mulher a habitar a mansão proibida. A segunda a sofrer o pão que o diabo amassou sob aquele teto.
Arturo, que alimentava a ilusão de ter a atenção total do pai começa a ver seu castelo de cartas ruir. E, agora, precisando dividir a casa e a vida com a madrasta e com um meio irmão que acaba de nascer começa a traçar um plano quase impossível de fuga na ilha.
Em meio a tudo isso, vamos descobrindo o outro lado de Wilhelm. Entram em cena um jovem presidiário, revelações sobre como foi o casamento com Nunziata e as verdades sobre as viagens e os destinos nada míticos das fugas do pai para fora da ilha. Também é o momento em que afetos não controlados aparecem na vida do adolescente, a pulsão sexual explode e Arturo se vê em um turbilhão de novos sentimentos.
Descrevi um bocado da história para dar um contexto. Mas a partir daqui preciso evitar qualquer sombra de spoiler.
A ilha de Arturo é um clássico. E me pergunto porque não o conhecia antes. A saga do jovem Arturo é narrada em primeira pessoa com ares epopeicos. O menino tem um sistema de verdades universais, quase um tratado Kantiano, que vai orientando sua vida. Tem também um pendor para fantasiar grandes aventuras e se ver voltando para a ilha coberto de glórias e riquezas, tudo para obter reconhecimento e orgulho paterno.
Mas a vida vai lhe pregando peças. E a realidade mostra que ele pode encontrar outros caminhos. E certamente esses caminhos não se cruzam com os do pai, um ausente desde o princípio. A misoginia de Wilhelm, herdada em parte do rico proprietário da mansão e em parte construída em uma vida de isolamento e rejeição à convivência com o filho salta aos olhos. Elsa Morante por vezes trata essa misoginia com tal naturalidade que nos irritamos, querendo justiça para esse pai cruel e frio.
A narrativa em tom memorialístico joga sinais do que vai acontecer na vida de Arturo. De imediato sabemos que não mora mais na ilha e que Silvestro, o caseiro, vai ter um papel fundamental na sua entrada na vida adulta. O que vai se revelando em camadas é a sordidez com que as mulheres são tratadas. Não apenas na mansão proibida. A vida delas na ilha é dura. Trabalham a terra, vestem-se de roupas pesadas e pretas, são obedientes, religiosas e castas e assistem aos maridos, em sua maioria pescadores ou marinheiros sairem pelo golfo, viajar a Nápoles e conhecer algo além da tacanha Procida.
O abuso dos jovens pelo antigo proprietário da casa e a estranha relação do pai com o jovem presidiário trazem à tona uma cortina de silêncio em torno do tema da sexualidade. Não há ali homoafetividade. Só violência, dominação pelo poder econômico e preconceito.
Arturo demora a perceber essas questões. Mas em sua formação, algumas das verdades absolutas vão caindo por terra e ele vai entendendo, com muito custo, que precisa fugir, se afastar daquele ambiente para poder enfim ser Arturo Gerace e não mais uma cópia daquele pai que vai aos poucos deixando de ser heroi.
A ilha de Arturo foi publicado em 1957. A Itália ainda estava sob forte impacto das consequências da guerra. No romance, o país está entrando no regime fascista e logo estará no abismo. Mas a obra de Elsa Morante não se insere no movimento realista que tomou conta das artes italianas naquele período de profunda revisão em todo o país. Ela fala de política em tom fabular, apela, no caso deste romance, para as tragédias gregas, as histórias de deuses greco-romanos e para a fantasia, sem deixar de dar ao leitor, em fragmentos engenhosamente compostos, uma visão de realidade. Espero por mais edições brasileiras de sua obra. Grandes chances de rivalizar com Natalia. E para os leitores de Elena Ferrante, a obra confirma que a Série napolitana é uma grande e engenhosa homenagem a Morante.
Adorei o epíteto de leitor peripatético… será porque lê andando? Viajando? Ou lê como quem caminha a esmo, desinteressadamente?
Gostei muito do texto, deu vontade de ler Morante. A costura com a série napolitana nos instiga a imaginar continuidades entre uma obra e outra – a mãe de Lila não se chamava Nunzia?
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Oi, Flaviana. Obrigado pela visita, pela leitura atenta e por comentar no blog.
Leitor peripatético porque estou sempre em movimento e acompanhado por um livro, pois entendemos que em todo lugar dá pra ler, como já demonstramos neste post: https://lombadaquadrada.com/2015/09/21/10-provas-de-que-voce-tem-tempo-pra-ler/
As influências de Elsa Morante sobre a obra de Elena Ferrante são muito evidentes e saltam aos olhos a cada capítulo de “A ilha de Arturo”, que é um livro encantador.
Por fim, muito boa a associação. Não tinha me dado conta da coincidência dos nomes de Nunzia e A Ilha com a mãe de Lila na Série Napolitana.
Abraços
Carlos
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