Quando Micheliny Verunschk indica um autor, você não titubeia – você vai atrás.
Foi em março desse ano que uma das minhas poetas preferidas falou pela primeira vez em Mar Becker. Comecei a segui-la no Facebook quando seu primeiro livro ainda estava em preparação. Mar é generosa e publica seu trabalho diariamente nas redes sociais – numa velocidade que é até difícil de acompanhar. Dava pra saber que vinha coisa boa dali. Até que, no meio da pandemia, saiu pela editora Uratau A mulher submersa.
Mar é diminutivo de Marceli, que é gaúcha, mora em São Paulo, e abriu mão da vida acadêmica para se dedicar à casa e à escrita. Tem uma irmã gêmea, uma mãe costureira e é neta de uma mulher que foi assassinada pelo marido com um tiro. Disso sabemos pelo Facebook, mas também pelos poemas reunidos nesse seu primeiro livro. Não é acaso a adoção do nome Mar e o título que remete ao mergulho, provavelmente involuntário. Submergir nem sempre é escolha, mas às vezes serve à sobrevivência, como vamos entendendo à medida em que o livro avança.
A mulher submersa é dividido em pequenas sessões. Na primeira, o Caderno dos fins, a poeta estabelece o ambiente doméstico e cotidiano como cenário que será uma constante até o fim do livro. A luz que entra na janela, o pó das unhas lixadas e os fios de cabelo são os sinais quase invisíveis, mas absolutamente concretos, de uma existência que se expressa pelos detalhes – eles são quase como a boia que mantém certa segurança contra a deriva absoluta sob a água.
O livro inteiro é sobre amor e morte, e a relação trágica entre ambos é apresentada desde o primeiro poema: a mulher que ama com um corpo estéril, fim de uma linhagem. Por outro lado, um amor libertado pela impossibilidade de reprodução, capaz de fruir o sexo com alguma liberdade – ainda, que sob os movimentos contidos de quem se move debaixo d’água.
Água que é do mar, mas é também do lago, do banho, da chuva, do vapor, da umidade, do espelho, do sêmen, dos olhos azuis. A submersão que é linha mestra do livro aparece em variadas formas: no cheiro do homem com quem acabou de fazer sexo, subindo no vapor do banho; no suicídio de Virginia Woolf em um lago e na tentativa de Ana Cristina César de se afogar no mar do Rio de Janeiro; na relação ambígua entre mãe e filha.
Fiquei pensando: é como se ao adotar o diminutivo Mar, a poeta estabelecesse uma relação transcendental com a matéria na qual submerge – e talvez, com a própria morte.
De alguma forma, Mar é todas as mulheres, que nascem e levam suas vidas submersas. Em vários poemas, ela explora a ideia de linhagem, dessa tragédia inata que passa adiante entre as mulheres da família, e entre as mulheres que se sucedem no relacionamento com um mesmo homem. No entanto, a relação entre as mulheres do livro é sempre ambígua.
Um dos meus poemas preferidos, do qual reproduzo um trecho abaixo é sobre isso:
as mulheres são todas iguais
todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje iguais às de amanhã
que não se engane o meu amor, porque em breve a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o que não pôde dizer pela sua
eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamenteé uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma uma sócom o passar do tempo acabamos nos tornando sempre a mesma
juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta no finalsempre a mesma garganta
a mesma língua de gárgula*
somos loucas, o meu amor me diz
somos, respondo, loucas daquela loucura iluminada que sobe por um corpo quando nele se levanta uma legião
Pode até ser tentador dizer que A mulher submersa explora uma sororidade inata, mas acredito que ele é bem mais sutil do que isso. As personagens dos poemas compartilham uma submersão semelhante e, uma vez embaixo d’água, as leis da física valem para todas. Como no poema acima, as ex não se irmanam por vontade própria, nem agem intencionalmente para tal; pelo contrário, o ambiente de que compartilham parece desenhar um destino comum e, mais do que isso, a forma como são percebidas pelo parceiro – uma potente metáfora sobre o machismo.
No poema mais claramente político do livro, Mar lembra mulheres assassinadas recentemente no Brasil, dentre elas Eloá e Marielle Franco, e conclui:
tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais
eu te amo mais, meu amor
porque tu me amas com amor apenas
mas eu tive que aprender a te amar com ódio
Por fim, o livro se encerra com o Caderno dos mortos, um longo poema sobre luto, quase profético do horror dos tempos de pandemia. Mais uma vez, as pequenas coisas concretas do dia a dia aparecem como âncoras, agora de quem se foi – um fio de cabelo, um livro marcado no meio, uma carta escrita há tempos, marcando a permanência de quem já morreu.
os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar
Mar tem publicado várias séries de poemas no Facebook, duas delas eróticas. Que se transformem logo em livros, e num contexto em que possamos pessoalmente encontrá-la para pedir um autógrafo.
PS: A foto em destaque mostra nossa famosa plaquinha com uma frase de A mulher submersa (p.32, Serra sem fim).
Livraço!
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