O trabalho de Amós Oz como ativista político tem jogado sombra sobre sua produção literária como ficcionista. Não é para menos: judeu israelense, Oz é uma voz constante no debate sobre a situação beligerante de Israel e Palestina no Oriente Médio – uma voz moderada, que prega o bom senso como uma via possível no embate geralmente resumido ao maniqueísmo Bem x Mal (quem é um e quem é outro, well, depende do lado em que se está, ou que se escolhe para defender).
Lançado em 2016 pela Companhia das Letras e já em sua primeira reimpressão, Como curar um fanático reúne quatro textos do autor sobre a questão; um livro curto e forte que procura reduzir as causas do conflito à sua essência, no intuito de que possíveis soluções não sejam escamoteadas por falsos argumentos. E, defende o escritor, o que ocorre no Oriente Médio não é uma disputa religiosa nem moral – é pura e simplesmente um conflito imobiliário.
Diferente dos que lançam mão de argumentos históricos para defender quem teria mais direito a ocupar Israel/Palestina – quem chegou antes, quem tem mais identificação com a terra, etc. – Oz afirma que ambos os lados têm razão. E que este embate entre o certo e o certo é o motivo da grande tragédia a que assistimos ano após ano pela televisão. Ainda assim, é o pensamento de que o outro está errado que alimenta o fanatismo, tema central do livro.
Criado em Israel desde criança, o escritor se diz especialista em fanatismo comparado e, meio a sério e meio brincando, afirma que o tema deveria ser estudado pelas Universidades. O mote do fanatismo comparado é coerente com a posição moderada que Oz assume. Quem vê apenas o título do livro e a informação de que o escritor é israelense pode erroneamente chegar à conclusão de que ele propõe o embate contra a ortodoxia árabe. Nada disso: os fanáticos também estão em casa, e são aqueles que não reconhecem como legítima a presença do povo palestino na região.
Dois dos textos presentes em Como curar um fanático são conferências proferidas por Oz na Alemanha. E, nestas, ele não se furta a fazer pesadas críticas ao modo como a Europa trata o conflito, em especial na imprensa, alimentando a polarização entre os dois lados a partir da chave Bem x Mal. Para os que acusam palestinos ou israelenses da segurança do julgamento à distância, ele lembra que ambos os povos são vítimas da Europa: enquanto judeus sofreram com discriminação, perseguição e finalmente o holocausto, os palestinos foram sujeitados a colonialismo, imperialismo e humilhação. Paradoxalmente (ou nem tanto assim), esse opressor em comum é um dos elementos complicadores para o entendimento entre os dois povos.
Passados mais de 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, há uma certa tendência contemporânea de pessoas que se definem politicamente de esquerda a apoiar a causa palestina, inclusive na Europa, sob o argumento de que os israelenses detém o poder econômico, militar e o apoio político dos Países mais importantes do mundo – o que não é mentira. Mas, para estes, Oz lembra que seus pais fugiram para o Oriente Médio para não serem enviados às câmaras de gás. Na época, seu pai lia “Judeus, vão para a Palestina!” pichados nos muros; agora, a frase foi substituída por “Judeus, fora da Palestina!”. Então, como agora, não há nenhum senso de ambivalência.
Aos europeus que julgam ambos os lados sob a proteção da distância, ele deixa um recado claro:
“Antes que sua gente nos olhe de cima para baixo, idiotas judeus, idiotas árabes, gente cruel, gente fanática, gente extremista, gente violenta , sejam mais cuidadosos ao apontar o dedo como advertência para todos nós. Nossa história sangrenta será mais curta que a sua história sangrenta”.
Mas, finalmente, como curar um fanático?
A pergunta é uma pegadinha. Oz afirma ser impossível nos livrarmos dos fanáticos, a não ser que o plano seja caçá-los um a um nas montanhas (e dentro de casa). Mas, contra o fanatismo, ele receita um remédio: a literatura. Ao oferecer o olhar do outro, ao injetar imaginação e por vezes bom humor, a boa literatura pode assumir esse papel de desmistificar clichês, de gerar entendimento sobre o outro: “A característica que define a boa literatura, ou a arte, é a capacidade de fazer se abrir um terceiro olho em nossa testa”, afirma.
Sob esse aspecto, é impossível ler Como curar um fanático sem pensar no atual momento político no Brasil, em que uma bicicleta ou um camisa da seleção brasileira ganharam status de símbolos de posicionamento político, sem chance para o argumento freudiano de que, às vezes, um charuto é só um charuto. Nesses tempos em que as redes sociais parecem ser um grande fórum aberto ao debate, o que ocorre na realidade são dois monólogos – afinal, o Facebook ganha dinheiro entregando aos seus usuários exatamente aquilo que eles querem ler e ver. Nos poucos pontos de contato entre pensamentos diferentes, o que assistimos, com raras exceções, são tentativas brutais de silenciamento.
Ou como diz Oz: “O sinal indicador do fanatismo não é o volume da sua voz, mas a atitude com as vozes dos outros”.
PS: a foto que ilustra esse post foi tirada na exposição Africa Africans, que esteve em cartaz no ano passado no Museu Afro Brasil. A obra é do artista Yinka Shonibare. Do outro lado do painel de ovos, há outra figura similar a esta, igualmente apontando uma arma na direção de um oponente que ele não vê (até porque, nenhum dos dois tem cabeça).
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