Alguns livros de contos acabam sendo quase romances divididos em partes, que funcionam autonomamente tanto quanto em conjunto. Esse é o caso de Manual da Faxineira, da americana Lucia Berlin (1936-1999), lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Há muitos motivos para essa sensação: na maioria dos 43 contos, temos uma mesma protagonista, às vezes também narradora, às voltas com uma vida tão conturbada quanto à da autora, que lutou muitos anos contra o alcoolismo.
Mas essa é uma percepção construída página a página, que deixa o leitor em dúvida até quase o final do livro, quando a relação entre as histórias se torna mais forte. Lucia Berlin parece deliberadamente jogar óleo na pista: quando quase temos certeza da ligação entre um conto e outro, um detalhe incongruente se impõe, e a gente dá aquela escorregada. É uma tática que faz o leitor ficar absolutamente atento ao longo das 531 páginas do livro, procurando sinais.
De certa forma, ao começar minha resenha ressaltando esses aspectos, estou fazendo um spoiler sensorial, ainda que não tenha dado ainda nenhuma informação sobre os múltiplos enredos que ela apresenta.
Sobre o que escreve Lucia Berlin, então? De muitas formas, sobre fronteiras, reais e simbólicas, por onde transitam suas personagens, a maioria mulheres. Boa parte das histórias se dá na cidade de El Paso, na fronteira com o México; na própria cidade do México e no Chile, que marcam a travessia da “fronteira” cultural com a América Latina, numa relação marcada pela tensão do colonialismo econômico.
Fronteiras de gênero, sociais e étnicas também estão presentes: logo no primeiro conto, uma mulher de classe baixa enfrenta o atrapalho de uma vida doméstica pouco abastada enquanto faz amizade com um velho índio numa lavanderia de baixo custo; em Manual da Faxineira, que dá nome ao volume, uma empregada doméstica expõe o pensamento sarcástico sobre o trabalho e sobre suas clientes ao percorrer a cidade em diferentes linhas de ônibus.
Em Dr. H. A. Moynihan, um dentista expõe um aviso na entrada de seu consultório: “Eu não trabalho para negros”. Um dos melhores textos do livro, ele é narrado pela neta do dentista, que o ajuda quando ele decide tomar uma medida drástica: arrancar todos os dentes para substituí-los por uma dentadura – não uma dentadura qualquer, que serviria para melhorar esteticamente seu sorriso, mas uma que reproduz fielmente a arcada dentária original (e falha) do dentista. As possibilidades que o conto abre para discussão, sobre arte, por exemplo, são instigantes, como deixa claro esse trecho:
A dentadura era uma réplica perfeita dos dentes na boca do meu avô; até as gengivas tinham o mesmo tom feito, pálido e doentio de rosa. Alguns dentes estavam obturados e rachados, outros lascados e gastos. Ele só tinha modificado um dente, um dos da frente, no qual tinha posto uma coroa de ouro. Era isso que a tornava uma obra de arte, ele disse.
Uma das características marcantes do conjunto é como os contos terminam em situações totalmente normais, após momentos de tensão ou bizarria. Retrato de um submundo americano – de um estrato social empobrecido e perdido em meio a um inalcançável way of life – Berlin encontrou um modo de expor desigualdades e problemas sociais varridos por debaixo do tapete, mostrando exatamente sob que tipo de “normalidade” eles se escondem.
Além do alcoolismo, o relacionamento conflituoso com a mãe é o outro tema recorrente no livro. Ambos acompanham de perto a personagem Carlotta, que parece ser um alter ego da escritora. Por conta da sua condição, a personagem atravessa diversos contos com problemas variados envolvendo o álcool, inclusive a prisão. Aqui, volto à dúvida sobre a interligação ou não entre os contos: Carlotta passa por tantas coisas que o próprio volume de infortúnios parece demais a uma só pessoa. Os pequenos detalhes que apontam para a possibilidade de múltiplos personagens certamente foi intencional: assim, a autora desfaz a sensação de que as histórias são totalmente autobiográficas, embora tenham muitos elementos dessa natureza.
Aqui, cabe um elogio à curadoria e à forma como os contos foram ordenados, desprezando a cronologia e privilegiando, talvez, um crescendo na maturidade com que a narradora descreve as situações. Assim, memórias de infância surgem em meio a histórias da velhice ou da vida adulta, sem nenhuma conexão aparente, contribuindo para o jogo contos/romance que se impõe.
Eleito um dos 10 melhores livros do ano pelo New York Times, Manual da Faxineira é difícil de resumir ou classificar, dadas as inúmeras possibilidades de leitura que ele proporciona – uma das melhores características que uma obra literária pode ter. Definitivamente, já concorre para a lista de melhores do ano deste humilde blog.
PS: a foto em destaque é da obra Entrevidas (between lives), de Anna Maria Maiolino, fotografada por Carlos no Malba, em Buenos Aires.
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Um comentário sobre “Vários contos, um quase romance”