Era 1928 e Virgina Woolf havia sido chamada para proferir duas palestras com o tema “A mulher e a ficção”, nas faculdades de Girton e Newnham. Criadas respectivamente em 1869 e 1872, eram instituições pioneiras na inclusão de mulheres no ensino superior britânico. De fato, haviam sido criadas por senhoras ricas especificamente para atender mulheres, já que as universidades inglesas tradicionais só viriam a aceitar plenamente estudantes do sexo feminino nos anos 1940.
Virginia era já era uma escritora conhecida quando recebeu esse convite – uma exceção num mundo literário quase exclusivamente masculino. Tanto ela quanto as moças para as quais falaria viviam uma realidade extremamente hostil às mulheres, mas que vinha em processo de mudança. Fazia alguns anos que elas já podiam votar, após uma intensa (e por vezes, violenta) campanha sufragista. A carreira da própria autora era exemplo das mudanças em curso – não só ela escrevia às claras como era dona de uma editora, junto com o marido.
Em vez de discorrer sobre questões estilísticas do que seria uma pretensa “literatura feminina”, Virginia escolheu um caminho completamente diverso: de forma totalmente pragmática, baseou sua conferência nos fatores materiais que influenciam diretamente a presença (ou ausência) de mulheres no meio literário. Com o título Um teto todo seu, o texto foi revisado e ampliado pela autora para publicação em livro. Quase 100 anos depois, ele sai no Brasil pela editora Tordesilhas, com tradução de Bia Nunes de Sousa e posfácio de Noemi Jaffe.
Um teto todo seu começa de forma quase metalinguística. Virginia Woolf se transfigura em personagem de si mesma e narra como sentou-se à margem de um rio para pensar no que dizer em sua palestra. Ela está na fictícia universidade de Oxbridge e é repreendida por um bedel ao caminhar no gramado, reservado exclusivamente aos alunos. Ao tentar entrar na biblioteca para pesquisar sobre mulheres e ficção, ela é impedida pelo bibliotecário: damas só são admitidas mediante a autorização de um membro da faculdade. Ao fim do dia, ela observa o jantar suntuoso oferecido aos estudantes e o compara à refeição espartana servida na faculdade feminina, onde não sobra dinheiro para nenhum item supérfluo.
Então, divaga sobre como as mulheres tiveram sua autonomia negada ao longo dos anos. Por séculos, eram impedidas de ter propriedade em seu nome ou de trabalhar para garantir uma renda própria. Estavam confinadas à casa e às tarefas domésticas, sem qualquer momento de privacidade em que pudessem desenvolver qualquer outra atividade – inclusive escrever. A conferência, então, desvia completamente do tema proposto para se debruçar quase que exclusivamente sobre um questionamento: “Por que um sexo é tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito a pobreza tem sobre a ficção?”.
Virginia analisa esse efeito ao longo da história e exemplifica como seria impossível a uma mulher escrever como Shakespeare na época de Shakespeare. Aqui, ela especula, mas poderia ter usado outro exemplo real: Mozart tinha uma irmã igualmente genial como musicista, mas ela só foi estimulada enquanto criança-prodígio; assim que chegou à adolescência, foi obrigada a casar-se e a abandonar qualquer pretensão de continuar exercendo atividade intelectual.
Assim, as mulheres cresceram até o século XX praticamente sem exemplos de outras mulheres em que pudessem se espelhar, numa naturalização perversa da ideia de que não eram capazes. “(…) as obras-primas não nascem de eventos únicos e solitários; são o resultado de muitos anos de pensamento comum, de pensamento coletivo, de forma que a experiência de massa está por trás de uma única voz”, apontaWoolf. Ela imagina, então, o sofrimento pelos quais artistas natas passavam ao sufocar seu próprio talento, sob o risco de serem taxadas de subversivas, loucas ou bruxas.
Aqui, Virginia passa a analisar também o esforço deliberado da sociedade patriarcal por manter as mulheres silenciadas. Observando a bibliografia existente sobre o sexo feminino àquela altura, ela avalia que as opiniões masculinas, inclusive as acadêmicas, estão baseadas numa mal-disfarçada raiva. Avalia que as mulheres são o espelho utilizado pelos homens para comprovar sua própria superioridade; por isso, agem para mantê-las em posição de inferioridade – vide o exemplo das universidades ou das leis sobre propriedade. É claro que esta realidade influenciava negativamente a existência de escritoras.
A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as mulheres sempre foram pobres, não por duzentos anos, mas desde o começo dos tempos. As mulheres gozam de menos liberdade intelectual do que os filhos dos escravos atenienses. As mulheres, portanto, não tiveram a mais remota chance de escrever poesia.
Virgina usa a si própria como exemplo: recebendo uma pensão de 500 libras deixada por uma tia, atribui a este dinheiro o fato de que pôde se tornar escritora. Assim, ela expõe como a única diferença entre mulheres e homens no campo da literatura é, na realidade, extraliterária. Claro que várias das barreiras históricas relatadas por Virginia já não existiam em seu tempo, mas o fato é que ainda lançavam seus efeitos – e continuam lançando.
A abordagem de Woolf é atualíssima se pensarmos como, ainda hoje, o senso comum e o machismo estrutural tentam aprisionar toda a literatura escrita por mulheres em uma caixinha fechada por estereótipos, como sensibilidade e delicadeza. Em contraposição aos homens, livres pra escrever o que lhes der na telha – inclusive, com sensibilidade e delicadeza – escritoras ainda enfrentam dificuldades para publicar; quando publicam, a briga é para não serem relegadas a nichos.
Um teto todo seu é bem mais que um livro sobre literatura. No fundo, ele é sobre ser mulher nesse mundo, com tudo o que isso representa.
PS: a imagem em destaque é um detalhe da tela Jogos, de Cícero Dias, fotografada em exposição individual no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo.
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Por que as mulheres ficaram milênios à sombra dos homems nos principais produtos da inteligência – artes, ciências, política e tudo o mais? A explicação comum é – a opressão masculina. Que realmente existiu e ainda existe. E a razão dessa opressão? Tirar proveito delas, como na escravidão? Nada mais? Simples assim? Não me parece tão simples. A maternidade não terá desempenhado um papel relevante? Essa função – gerar filhos, parir, amamentar, proteger nos primeiros anos e educar – não fez a mulher mais dócil, sensíve, delicada e compassiva?
Tais atributos sem dúvida foram frutos de uma divisão de tarefa: ela cuidando da prole, ele caçando, pescando, guerreando. Estas funções masculinas deram ao homem mais estatura, mais força física e, principalmente, mais agressividade. Características que aí estão, em pleno século XXI. E que fazem a mulher mais moldada à civilização. Ou alguém vê alguma função para a agressividade, além da violência? Algo apenas nocivo, em nossos dias?
Mas por que as mulheres demoraram tanto a compreender que eram iguais aos companheiros, e até mais bem dotadas em alguns aspectos (sensibilidade, intuição, sociabilidade)?
Isso não teria a ver com algo chamado ‘crenças’? Afinal, as crenças – religiosas ou não – comandam as nossas vidas. Se nossos antepassados – homens e mulheres -acreditavam, com todas as forças, que o homem era superior em tudo, por que haveriam de agir diferente do que fizeram? Até o cristianismo – considerado uma evolução (pelos que o professam) registrou com todas as letras: “mulheres, sede submissas aos vossos maridos”.
Não será plausível admitirmos que a compreensão dessa cegueira veio (ou está vindo) com as revoluções intelectuais – como o iluminismo – a escolaridade e a evolução da literatura, entre outros fenômenos?
Que pessoas mais desenvolvidas puxaram o comboio dessa mudança? Entre estas, não poderíamos colocar Virgínia Woolf, com textos bem adequados aos nossos dias – como ‘Um teto todo seu’?
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