São Paulo entre sombras e luzes

A história da leitura de Ronda da meia-noite, livro do santista Sylvio Floreal com seleção de crônicas publicadas em jornais paulistanos dos anos 1920 é no mínimo curiosa. A edição faz parte da “Coleção São Paulo”, da Editora Paz e Terra, cujos volumes de crônicas e ensaios, todos do começo do século XX, foram republicados no ano de 2003, já dentro dos preparativos para o aniversário de 450 da cidade de São Paulo. Nosso exemplar de Ronda foi pego gratuitamente por Renata, há mais de 10 anos, em uma feira de livro no Diário de Pernambuco e dormiu na prateleira da biblioteca dela no Recife, viajou mais de 2 mil quilômetros, e teve dois endereços em São Paulo até que, movido pela curiosidade, encontrei o livro em meio a títulos de história. E foi ao fim da leitura que transportamos a coletânea para a estante de literatura brasileira, seu verdadeiro lugar.

A São Paulo do começo do Século XX tem uma gama variada de cronistas. A cidade começava a crescer em ritmo galopante, com o impulso da cultura do café e do começo da industrialização. Aqui no Lombada já resenhamos Cosmópolis, de Guilherme de Almeida, uma joia da qual temos dois volumes da primeira edição, garimpados por Renata em sebos. O poeta fez para o Jornal O Estado de São Paulo uma série de crônicas em que retrata as diversas comunidades de imigrantes que se instalavam na cidade que, aos poucos, ganhava contornos do que seria futuramente uma das maiores metrópoles do mundo. Alcântara Machado, outro autor que percebeu essa urbe em transformação teve resenha de seu volume de contos, publicado pela Global e que traz Brás, Bexiga e Barra Funda, um dos clássicos da paulistanidade. Essa São Paulo efervescente, repleta de imigrantes também está presente nos dois volumes do ótimo relato em tom jornalístico e com apuro histórico de Roberto Pompeu de Toledo, publicados neste link e também neste aqui e que podem ser encontrados em edição da Objetiva.

E para nos aproximarmos do contexto da obra de Floreal, indicamos também o recente ensaio historiográfico de Boris Fausto sobre três crimes de abalaram a cidade nos primeiros anos do século passado, cuja resenha está aqui, com publicação da Companhia das Letras.

É justamente no universo das ruas escuras, dos presídios, dos bares, boates e do meretrício, do movimento noturno no mercado central, do hospício do Juqueri, entre tantos recantos das cidade que o jornalista Domingos Alexandre, que assinava sob o pseudônimo de Sylvio Floreal, centrou a temática de suas crônicas. Com um olhar aguçado e uma narrativa que ao mesmo tempo mantém o necessário distanciamento que um trabalho jornalístico precisa ter, ele consegue entregar ao leitor textos saborosos, detalhes dos lugares que retrata, uma sensibilidade ímpar para dramas humanos. Em uma visita ao presídio da Avenida Tiradentes, que por muitos anos foi uma das principais cadeias públicas da cidade e abrigou centenas de presos políticos durante a ditadura, por exemplo, ele se impressiona com a figura de um criminoso, que vem a ser o autor de um dos crimes da mala retratados na obra de Boris Fausto.

Floreal retrata com precisão o crescimento desordenado da cidade, as chagas abertas pela desigualdade social que vai se aprofundando, evitando qualquer romantização da cidade que mais crescia no país naquele momento e que muitas vezes, inclusive na obra de Guilherme de Almeida e Alcântara Machado, merecia um retrato mais condescendente da crônica da época.

A seleção de crônicas está organizada por trípticos temáticos. Começa pelos vícios, centrados na vida noturna, depois o trio da miséria, mostrando a dura realidade de migrantes e imigrantes que chegam para trabalho duro na indústria, o tríptico das amarguras –  com a prisão, o hospício e o cemitério – é seguido pelo dos esplendores, com um olhar todo especial para as mulheres e os casais de amantes. No tríptico dos costumes pitorescos, tem o incrível texto sobre as petisqueiras que vendem seus quitutes pelas ruas da cidade.  Nos pecados, relatos de crimes e aventuras pelos arrabaldes da cidade. E, para encerrar a saga, um humor ácido no tríptico tragicômico, que inclui uma história surreal sobre dois gatos indiscretos.

Além desse amplo panorama na vida da cidade, que revela muito do São Paulo ainda é hoje, provinciana e global ao mesmo tempo, chama a atenção a escrita de Floreal. Ele desenvolve um ritmo para cada narrativa, ajustando as palavras à velocidade do que está nos contando, com uma sonoridade que muitas vezes me fez voltar a leitura de um parágrafo para, em voz alta, repetir a cadência que ele imprime às frases com uma habilidade incomum.

Foi uma leitura impressionante. E surpreendente, mais pelo absoluto desconhecimento da figura e pelo modo com o livro esteve ali, por anos a fio, atraindo minha curiosidade, enfim saciada. Não deve ser fácil achar essa coleção em livrarias, mas certamente em sebos dá pra encontrar essa preciosidade, especialmente para que ama este cidade maluca.

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