Praia e literatura

2017-06-14 08.21.47A vida descalço é mais um livro que chegou à estante de casa pela aparência. Claro que o nome do argentino Alan Pauls na capa ajudou no interesse. Mas a edição da Cosac Naify (sempre ela!) ajudou bastante na escolha, meio que às cegas. Julguei que seria um romance, como o excelente Wasabi, que já tinha lido e resenhei aqui.

E qual não foi a surpresa, ao iniciar a leitura das 92 páginas do livro,  em descobrir que se tratava de um ensaio.

Misturando os verões recentes passados em praias do Uruguai com as férias da infância e da adolescência, alternadas entre Villa Gesell, balneário próximo de Mar del Plata, com forte presença de comunidades hippies, e viagens ao Rio de Janeiro e Punta del Este, Alan Pauls vai traçando um roteiro sentimental de memórias e reflexões sobre a vida na praia.

É importante deixar claro que para um menino urbanoide, criado em Buenos Aires, a quilômetros de distância da praia mais próxima, Alan Pauls tem a praia como aquele lugar de passagem, quase mítico. Eu, paulistano, distante pelo menos 60 quilômetros do mar, me identifiquei, e muito, com as reminiscências litorâneas do argentino, que talvez sejam menos compreensíveis para aqueles leitores que têm a praia como seu quintal.

É justamente essa visão da praia como lugar de passagem que impregna as páginas do ensaio. Dos verões mais antigos do passado – em que podia finalmente estar mais próximo do pai, separado da mãe e ausente de seu dia a dia durante todo o resto do ano – Pauls vai puxando o fio da memória.  E relata lembranças das incursões nas praias vizinhas ao balneário onde se hospedavam, do caso sazonal que o pai mantinha com uma funcionária do hotel, as primeiras descobertas literárias da adolescência e a leitura voraz de Cortázar, que iria moldar as influências do futuro escritor, passando pelos cinemas de praia, sempre a trazer grandes sucessos para entreter banhistas com a pele dourada (ou vermelha) de sol, ávidos por viver temporadas de fruição da falta de rotina que marca os demais 11 meses em que encaram emprego, escola, horários e hierarquias.

Alheio à alegria forçada dos banhistas, Alan Pauls, como todo turista, sabe que é um invasor. Ele vê o balneário da infância como “a prova histórica (e também pessoal) dessa condição platônica: a praia como superfície neutra e absorvente, como espaço-tela por excelência e, portanto, o non plus ultra do conquistador, do adelantado, do pioneiro, que pode se dar ao luxo de projetar nele as imagens mais arbitrárias sem ter a impressão – sem sentir culpa – de estar contrariando alguma natureza original”.

Quando chegam os primeiros sinais da passagem da adolescência tutelada pelos adultos para a juventude e ganha autonomia, ele passar a ir à praia com amigos e namoradas. Com estas, busca fugir do verão quente e alucinante. Vai à praia em julho, no auge do inverno austral. Ruas desertas, comércio fechado, poucos hotéis e raros cafés funcionando. A praia ganha um ar melancólico, soturno. O mar, cinzento, gelado e agitado está ali, mostrando sua presença. Mas é no interior das casas e nos quartos de hotéis aquecidos que se desenrola uma outra forma de ocupar o balneário. E é também quando mais sexo, literatura, cinema e cigarros tornam-se parte do ambiente.

É nos períodos de baixa estação,  que “durante alguns anos, os suficientes, e suficientemente persistentes, para que os outonos, os invernos e mesmo as primaveras temporãs, ou seja, todas as estações em que o serviço meteorológico e as inclemências da costa atlântica desaconselhavam qualquer uso da praia, deixassem de ser a amável experiência urbana que tinha sido civilizada por uma cidade resistente a se deixar intimidar pela natureza, aquecedores com fluxo balanceado, táxis mornos e uma vida em geral sob um teto, e se transformassem, ofuscadas pelo modelo romântico de Julia, em longas sessões de tortura junto ao mar, que só o anseio de autoconvencimento mais encarniçado podia fazer com que celebrássemos como deliciosos transes amorosos”. O autor mostra esses momentos vividos intensamente em meio a intempéries climáticas que ele e as namoradas ignoravam, para fazer daquelas incursões ritos de passagem para a vida adulta.

A vida descalço também dá ao leitor um roteiro de referências cinematográficas e literárias que de alguma foram remetem ao litoral. Alan Pauls afirma que a praia, em si, é um cenário pobre e raramente bem utilizado no cinema e nos livros. Lembra da famosa cena de A um passo da eternidade, que marcou o cinema (e está na foto abaixo, publicada na segunda guarda do livro) e diz que apesar de icônica, a cena de amor na praia, para ele, remete ao desconforto que é transar com água salgada e areia no corpo. As referências, portanto, são mais de livros que foram lidos na praia, filmes que foram vistos em seus verões e invernos junto ao mar do que efetivamente boas obras que têm a praia como cenário.

O ensaio suscita ao leitor, pelo menos foi assim para mim, a construção mental de memórias da praia. Da infância à vida adulta, fiz uma revisão de meu relacionamento com o mar. E, espantado, percebi o quanto mudou desde que me jogava sem medo nas ondas de Caraguatatuba e Ilhabela no comecinho dos anos 1970, passando por uma longa temporada de rejeição a ficar com o pé na areia, até os mergulhos recentes nas águas quentes de Carneiros, em Pernambuco, ou a visão de uma praia do sudoeste da França em pleno inverno, refazendo um elo sentimental com o mar, esse lugar sempre distante onde nunca me sinto em casa.

Me enxerguei, e muito, nas praias de Alan Pauls.

 

 

 

13 comentários sobre “Praia e literatura

  1. Queria poder entender/sentir essa relação quase mágica que algumas pessoas têm com a praia. Sou carioca, cresci com a praia, estou sempre próximo ao Atlântico ou a Baia da Guanabara.

    Água salgada pra mim é tão natural quanto o oxigênio rs

    O único livro que me tocou o peito nesse sentido foi ‘O Mar’, do John Banville.

    ‘A Vida Descalço’ vai entrar na lista de leitura.

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